A história dos povos indígenas na América Latina é marcada pela tragédia e pela violência. A chegada dos europeus, a partir da viagem feita pelo genovês Cristóvão Colombo (1451-1506), em 12 de outubro de 1492, deu início ao que muitos historiadores atualmente classificam como o “grande extermínio” ou “genocídio dos povos indígenas”.

Pesquisas recentes indicam um passado riquíssimo dos povos que habitavam o continente americano antes da chegada dos europeus. Sítios arqueológicos como Machu Picchu, no Peru; Chichén Itzá, Uxmal, Teotihuacán e Tulum, no México; as ruínas de Copán, em Honduras; Tikal, capital do Império Maia, na Guatemala, são provas incontestáveis dessa história. No Brasil, temos os sambaquis — morros de conchas, feitos por populações de caçadores-coletores entre 6.000 anos e 1.000 anos atrás —, os quais indicam a imensa história desses povos também no nosso território.

Segundo a professora e historiadora Maria Cristina dos Santos, “a ideia dos indígenas como ingênuos que sucumbiram à ação conquistadora nasceu na década de 1950 e vigorou até os anos de 1970, com as publicações da História dos Vencidos de Miguel León-Portilla e Nathan Wachtel”. Para ela, essa tendência historiográfica dominou durante décadas a narrativa sobre a conquista dos cerca de 50 milhões de indígenas que habitavam o continente americano.

Portanto, de acordo Maria Cristina dos Santos, até muito pouco tempo, a história oficial era aquela narrada pelo cronistas europeus, para os quais a “conquista havia retirado os indígenas da barbárie, colocando-os em marcha para a civilização”, na verdade, essa versão dos fatos evitava apontar que os povos indígenas foram as vítimas de um “processo de conquista”.

A historiadora afirma que ao esvaziar esses povos das “características culturais mais fundamentais, tais como a relação com a natureza ou a concepção anímica de mundo” essa acabaria repercutindo inclusive em “políticas indigenistas praticadas pelos Estados Nacionais de que os indígenas são incapazes e que precisam ser tutelados por organismos governamentais como o Serviço de Proteção ao Índio SPI e a Fundação Nacional do Índio (Funai).”

Desde a chegada de Colombo, segundo o autor de O Mar Sem fim, Portugal e a Forja do Primeiro Império Global, o historiador britânico Roger Crowley, teve início “uma era de assassinato maciço por parte dos conquistadores europeus”. Alguns, como o historiador norte-americano Samuel Heliot Morison, escreve em sua famosa obra Christopher Columbus, Mariner, que “a política cruel iniciada por Colombo e continuada por seus sucessores resultou em um genocídio completo”.

Howard Zinn, autor do clássico Uma História do Povo dos EUA, indica que as atrocidades praticadas pelos europeus contra os indígenas foram imensas. Segundo ele, dois anos após a chegada de Colombo, em razão dos “assassinatos, mutilações ou suicídios, metade dos 250 mil indígenas que viviam no [que é hoje o] Haiti estavam mortos”. Por volta de 1650, ou seja, cerca de um século e meio depois após a chegada dos europeus, os cerca de cinco milhões de arauaques, ou Arawak, povo que habitava a região das ilhas do Caribe (Bahamas e Hispaniola, atual Haiti e República Dominicana), onde Colombo aportou com as caravelas Pinta, Nina e Santa Maria, tinham praticamente desaparecido.

Segundo o historiador, José Murilo de Carvalho, no continente americano “viviam, em 1492, cerca de 50 milhões de habitantes, não muito menos que a população da Europa. A Cidade do México, capital do império asteca, tinha 200 mil habitantes, mais talvez do que qualquer cidade europeia. Paris tinha na época cerca de 150 mil”. Portanto, o que se deu com a chegada dos europeus às Américas foi o início de um processo violento, que praticamente devastou os cerca de 50 milhões de indígenas que aqui viviam.

No Brasil não foi diferente. Quando os portugueses aportaram nessas terras, viviam aqui cerca de 5 milhões de indígenas. Conforme escreveu José Murilo de Carvalho, “ao final de três séculos, a população da colônia portuguesa era quase a mesma de 1500, com a diferença de que tinham desaparecido 3 milhões de nativos, média de 1 milhão por século”.

Essa mortalidade altíssima foi fruto de vários fatores. Nos primeiros anos após a chegada dos portugueses, doenças como gripe, sarampo e varíola, trazidas pelos europeus, arrasaram as populações indígenas. Há relatos como o do jesuíta José de Anchieta (Padre Anchieta) no qual é possível ler sobre a morte de milhares de índios no intervalo de apenas algumas semanas.

Outro fator responsável pela morte de milhares de indígenas foi a escravidão. Milhares de indígenas foram escravizados pelos europeus no continente americano. Além disso, figuras como Mem de Sá (1504-1572), que assumiu o posto de governador-geral do Brasil, em 1556, entraram para história como exterminadores de todos os índios que não aceitavam se submeter à conversão à fé católica e ao controle então exercido pelos jesuítas.

Entre os povos vítimas da política de extermínio praticada por Mem de Sá estão os caetés, os tupiniquins e os tamoios. Segundo José Murilo de Carvalho, Mem de Sá se vangloriava de “ter destruído todas as aldeias tupiniquins em Ilhéus [na Bahia] e de ter enfileirado uma légua de cadáveres deles na praia”.

Já nos ataques dos portugueses aos guaranis que viviam nas missões jesuíticas, de acordo com a descrição de Capistrano de Abreu, os europeus testavam a lâminas das suas espadas em crianças índias: “provavam o aço de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros”.

Infelizmente, essa história de massacres se perpetuou no tempo. Um exemplo disso é que em março de 1968, o governo da então Ditatura Militar (1964-1985) veio a público assumir que várias tribos indígenas tinham sido dizimadas com a ajuda do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o qual havia sido fundado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, em 1910.

Um relatório apresentado pelo então procurador federal, Jáder de Figueiredo Correia, afirmava que durante as décadas de 1940, 1950 e 1960 foram praticados todo o tipo de “perversões sexuais, assassinatos e todos os outros crimes enumerados no Código Penal contra os índios e suas propriedades”. Segundo o texto de Figueiredo, “o Serviço de Proteção aos Índios foi, durante anos, um antro de corrupção e assassinatos indiscriminados”.

O caso se tornou famoso após ser alvo de um artigo intitulado Genocide (Genocídio), escrito por Norman Lewis e publicado no Sunday Times Magazine, em 1969. Tempos depois, a história viraria o livro A View of the World, escrito pelo mesmo jornalista.

Segundo Lewis, “dos 19 mil mundurucus que se acreditava terem existido nos anos 30, restavam apenas 1.200. A população de guaranis foi reduzida de 5 mil para trezentas pessoas. Restavam quatrocentos carajás dos 4 mil de outrora. Dos cintas-largas, que haviam sofrido um ataque aéreo e foram expulsos para as montanhas, possivelmente quinhentos sobreviveram de um total de 10 mil. A orgulhosa e nobre nação Kadiwéu — ‘os cavaleiros índios’ — encolhera para um lamentável grupo de cerca de duzentos indivíduos”.

Com a redemocratização essa história mudou muito pouco no Brasil. Ainda hoje, as populações indígenas são vítimas de constantes violências. Para combater esse quadro, em 13 de setembro de 2007, o Conselho dos Direitos Humanos, da Assembleia Geral da ONU, aprovou o texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Mesmo assim, 12 anos depois, segundo a relatora especial da ONU para os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, “a expansão das indústrias extrativistas, do agronegócio e dos megaprojetos de desenvolvimento e infraestrutura que invadem as reservas ainda permanecem como as principais ameaças para a maioria dos povos indígenas”. Atualmente, o cenário de conflito entre indígenas e o agronegócio é constante e grave.

De acordo com o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2017, em 2016, a população indígena do país sofreu com suicídios (128 casos), assassinatos (110 casos), e mortalidade na infância (702 casos). Além disso, de acordo com o Relatório, essas populações “sofreram violações relacionadas ao direito à terra tradicional e à proteção delas”.

De acordo com informações do IBGE e da Funai, em 2010, foram identificadas, no Brasil, 305 etnias, das quais a maior é a Tikuna, e reconhecidas 274 línguas. No total, a atual população indígena brasileira está em torno de 900 mil indígenas. Entre todas as etnias que existem no Brasil de hoje, os Tikúna, com 6,8% da população indígena, são o maior grupo.

Formação Sociocultural Brasileira

Darcy Ribeiro, em sua obra clássica O Povo Brasileiro afirma que o processo de formação da nossa sociedade “se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos” e que esse entrechoque foi “altamente conflitivo”. Para ele, “pode-se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se torna cruento, sangrento”. Prova incontestável disso são as 61.283 mortes violentas intencionais ocorridas no Brasil em 2016, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017.

Para se ter uma ideia da assustadora força da violência cotidiana que toma conta do país, o número de assassinatos ocorridos no Brasil, em 2016, é 30 vezes maior que o de toda Europa. Quando comparado ao de países que passam por uma guerra civil, como a Síria, os números brasileiros são 25% maiores — de acordo com o Departamento de Pesquisa sobre Conflitos e Paz da Universidade de Uppsala, na Suécia, e o Banco Mundial, no mesmo período morreram 44,3 mil sírios vítimas do conflito naquele país.

Portanto, é possível afirmar que a utilização de mão de obra escrava indígena e africana marcou profundamente nossa identidade e produziu uma sociedade injusta, violenta e muita vez fraturada. Desde a chegada dos portugueses até a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a escravidão foi terrível alicerce da organização social do Brasil. Todos os ciclos econômicos do país, da fase colonial à imperial, utilizaram a mão de obra escrava.

Essa agressão fundadora é uma das particularidades da nossa cultura. A miscigenação racial de índios e africanos com europeus se deu, majoritariamente, pela força, pela violência e a exploração dos portugueses brancos sobre os outros dois grupos étnicos.

Além disso é preciso considerar que a escravidão de índios e negros teve gravíssimos desdobramentos sociais. Ainda hoje negros e índios não têm acesso às mesmas oportunidades que a população branca. As atrocidades e mazelas que foram praticadas contra os povos indígenas e a diáspora negra desembocaram em uma estrutura social marcadamente esfacelada e desigual.

De acordo com um relatório feito pela ONG Oxfam, em 2017, o Brasil ficou em 9º lugar entre os 10 países mais desiguais do planeta, onde apenas 5 bilionários concentram riqueza equivalente à da metade mais pobre do país.

Para piorar, até pouco tempo o Brasil era uma sociedade que convivia com a enorme dificuldade para debater a questão do racismo. Tal comportamento foi fruto do mito da democracia racial no Brasil, tese ganhou muita força com a publicação do livro Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre, em 1933. De acordo com Joaze Bernardino Costa, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) “o mito da democracia racial não nasceu em 1933, com a publicação de Casa-Grande & Senzala, mas ganhou através dessa obra, sistematização e status científico”.

Segundo a mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Djamila Ribeiro, o mito da democracia racial levou o país a acreditar, durante muitas décadas, que “aqui não existia racismo. De que racismo é o que existia nos Estados Unidos ou na África do Sul”, porque nesses países o crime de racismo estava descrito na lei.

Esse quadro só começaria a ser realmente enfrentando no nosso país com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, a qual trouxe em seu texto a definição, até então inédita no Brasil, de que a prática do racismo constituía crime inafiançável e imprescritível.

A formação sociocultural brasileira é, portanto, marcada pela violência historicamente praticada contra índios e negros, mas também pela multiculturalidade. Além de indígenas, africanos e portugueses, nos séculos XIX, XX e XXI, o Brasil recebeu e continua recebendo povos dos mais variados países. Aqui primeiro chegaram levas de alemães, italianos, ucranianos. Depois, vieram japoneses, sírios, libaneses, judeus e armênios. E, ultimamente, o país recebeu bolivianos, coreanos, haitianos e venezuelanos. Cada um desses grupos contribuiu e contribui para a construção da cultura brasileira.

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